Tudo sobre Inteligência Artificial
O portal Repórter Brasil trouxe informações sobre o desejo de uma empresa de tecnologia de construir verdadeira “cidade data center” em Eldorado do Sul (RS), um ano após a enchente que devastou o Estado.
Com o forte crescimento da inteligência artificial (IA) nos últimos anos, a demanda por data centers específicos vem aumentado no mundo todo. Sendo assim, as empresas que operam no setor estão construindo grandes complexos voltados para a tecnologia.
Um exemplo é a xAI, que construiu um supercomputador em Abilene, Texas (EUA) no ano passado, mas que enfrentou resistência local por conta do consumo de recursos locais, que poderiam prejudicar a população que vive nos arredores.
No Brasil, a Scala Data Centers está se preparando para construir um complexo de data centers no município gaúcho, que promete ser o maior complexo de infraestrutura digital da América Latina. Eldorado do Sul foi uma das cidades rio-grandenses-do-sul devastadas pelas chuvas que deixaram o Rio Grande do Sul debaixo d’água e que tenta se reerguer.
Em outubro passado, o governo estadual fechou parceria com a empresa para a realização do projeto. À época, o secretário de Desenvolvimento Econômico do Estado, Ernani Polo (PP), disse que o contrato “é oportunidade de transformar o Rio Grande do Sul no novo Vale do Silício no Brasil“.

Scala AI City: a primeira “cidade data center” do Brasil
O empreendimento é chamado de Scala AI City. Confira mais informações do projeto, segundo dados do governo do Estado do Rio Grande do Sul:
- O investimento inicial é de cerca de R$ 3 bilhões, com espaço total de mais de 7 milhões de metros quadrados;
- Contudo, as empresas que utilizarão as instalações injetarão mais R$ 4 bilhões, podendo passar dos R$ 600 bilhões no projeto total;
- A título de comparação, o maior investimento do Estado realizado até hoje é de R$ 24 bilhões — a ampliação da CMPC, fábrica de celulose chilena, em 2024;
- Mais de três mil empregos diretos e indiretos deverão ser gerados;
- Quanto à capacidade inicial de TI do data center, serão 54 MW, podendo chegar a 4,75 GW;
- O governo estadual afirma que a região escolhida tem segurança comprovada contra desastres naturais, grande oferta de energia elétrica e capacidade imobiliária;
- O data center será ligado a outro do mesmo tipo, que se encontra em Porto Alegre (RS). Futuramente, ele será conectado ao cabo submarino Malbec, que liga São Paulo, Rio de Janeiro e Buenos Aires.
A primeira etapa do empreendimento deverá entrar em operação em até dois anos e, inicialmente, será híbrido, ou seja, servirá para cloud e IA.
Questões ambientais
Porém, há preocupações com relação ao meio ambiente. Uma lei municipal aprovada exclusivamente para o projeto aponta que o licenciamento da obra “se dará de forma simplificada e autodeclaratória“. Nesse sentido, vale lembrar que, nem ao nível estadual, nem ao nível local, há uma regulação para licenciamento ambiental de data centers, lembra o Repórter Brasil.
Isso porque os data centers demandam muita energia e água para alimentar seu hardware e resfriamento, sem contar o lixo eletrônico gerado. Os 4,75 GW anunciados pela Scala servirá para funcionamento dos servidores e para o resfriamento deles, explica, ao Repórter Brasil, o professor Ricardo Soares, coordenador do mestrado em ciência do meio ambiente da Universidade de Veiga de Almeida e servidor do Instituto Estadual do Ambiente do Rio de Janeiro.
“Os 4,75 GW dizem respeito à demanda de energia elétrica que o complexo de data centers deverá consumir em seu pico operacional, e não à sua ‘capacidade de processamento de dados’ propriamente dita”, continua.
Uma comparação do portal mostra que a “cidade data center” brasileira terá consumo maior do que a quantidade de energia gerada de duas usinas: a Jirau, que abastece 40 milhões de pessoas e se encontra em Rondônia, e a de Santo Antônio, que abastece 39 milhões de usuários: respectivamente, as usinas geram 3,8 GW e 3,6 GW, segundo dados do EPE – Plano Nacional de Energia 2030.
Mas este não é o primeiro caso de data centers questionados pela comunidade local, tampouco o mega computador da xAI. Nesta reportagem do Olhar Digital, você confere mais exemplos.
No Brasil, há outro caso bem famoso de construção tecnológica que causou polêmica. Trata-se da usina de dessalinização que o governo do Ceará deseja construir na Praia do Futuro, em Fortaleza (CE), mas que enfrentava resistência das empresas de internet, cujo receio era o de que as obras pudessem afetar cabos submarinos que passam na região.
Em nota encaminhada ao site, a Scala garante que a operação do data center “não teria qualquer efeito no abastecimento elétrico da cidade ou de municípios vizinhos”, além de que a “energia utilizada será 100% renovável e certificada, com fornecimento garantido por parcerias estratégicas”, mas não cita de onde será obtida a energia demandada.
O governo estadual, por sua vez, afirma que, “com o auxílio do clima mais ameno do sul do Brasil, os data centers serão mais eficientes“, com eficiência energética e de água zerados, “ou seja, não utilizarão troca de água em seus sistemas de refrigeração”.
Já o hidrólogo Iporã Brito Possantti ressalta a necessidade de estudo sobre quais os possíveis impactos ao meio ambiente que esse tipo de projeto pode causar.
“Esse tipo de impacto precisa ser previsto no licenciamento. É importante que não haja isenção desses estudos para qualquer empreendimento, porque, depois, quem vai precisar pagar para corrigir e mitigar os impactos é a sociedade, os governos. É uma questão de economia e de justiça“, afirma.
Possantti criou, com colegas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) um site abastecido com dados e mapas relacionados às enchentes de 2024, que assolaram o Rio Grande do Sul, para auxiliar os gestores públicos no enfrentamento do problema.
“Não podemos simplesmente achar que uma inovação tecnológica, que é bem-vinda e necessária, está desprovida de impacto”, pontua ao Repórter Brasil o professor Ricardo Soares.
Mas a dona do empreendimento frisa que o Scala AI City será dotado dos “mais altos padrões de sustentabilidade, inovação e governança” durante sua construção e prossegue, dizendo que “cumpre rigorosamente todos os requisitos legais em todos os seus empreendimentos“. A companhia enfatiza ainda que o licenciamento seguirá a mesma conduta.
Sobre a capacidade energética, a Scala aponta que os 4,75 GW de processamento de dados a ser alcançado quando a “cidade data center” estiver funcionando a pleno vapor a transformará “em um dos maiores polos de processamento de dados do mundo“.

Só que a quantidade de gigawatts anunciada é superlativa, já que, hoje, o Brasil tem capacidade total de 777 MW, tendo capacidade real de 54 MW. Ao colunista Renan Setti, do jornal O Globo, o CEO e cofundador da Scala, Marcos Peigo, comentou mais sobre as questões de capacidade da futura Scala AI City:
O sonho é construir uma cidade. O plano eventual é ter até 4.750 MW, com consumo equivalente ao de todo o estado do Rio. No mundo, não há nada parecido; o maior de que tenho notícia é um projeto com cerca de 1.500 MW anunciados… Exigiria um investimento nosso da ordem de US$ 50 bilhões, e seria um trabalho para dez, 20 anos…
Marcos Peigo, CEO e cofundador da Scala, em entrevista ao jornal O Globo
Enquanto isso, a prefeita de Eldorado do Sul, Juliana Carvalho (PSDB), ressalta que vai “olhar para todos os detalhes do empreendimento“, mesmo que a lei municipal deixe o licenciamento ambiental mais simples. “Qualquer intervenção tem algum impacto. O trabalho da prefeitura tem que ser amenizar isso de alguma forma, mas sem prejudicar o investimento e o desenvolvimento do município“, prossegue.
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Por que Eldorado do Sul?
A Scala justifica a escolha da região para construir sua “cidade data center” não só pelas condições citadas no começo desta reportagem, mas, também, por fatores ligados ao “maior desafio para o setor, especialmente com a ascensão da IA“, sem contar que o município tem “robusta estrutura de transmissão, com uma subestação de capacidade de até 5 GW — a esmagadora maioria não utilizada”.
O governo do Estado também ressalta o clima ameno do sul do Brasil, que contribui para a que a Scala AI City seja construída na região, pois, teoricamente, temperaturas mais baixas favorecem o resfriamento dos servidores, que demandariam menos energia elétrica para isso.
O problema é que o cenário de frio e clima ameno da região sul vem mudando ano a ano. Por exemplo: Porto Alegre, em fevereiro, bateu recordes de calor duas vezes e virou a capital brasileira mais quente nesse período. No mês passado, ela chegou a registrar 7,3 °C acima das médias históricas. Detalhe: a capital do Rio Grande do Sul está há apenas 12 quilômetros de Eldorado do Sul.
Soma-se a este fato que o Estado é o segundo colocado no ranking de ocorrências de estiagens e secas no Brasil — à frente, só a Bahia. Neste ano, 307 municípios gaúchos (61% do total) decretaram emergência dada a ausência de chuvas.
O The Guardian rememora que a combinação de data centers e crise hídrica já causou protestos. Isso aconteceu em 2023, no Uruguai, relacionado a um complexo tecnológico do Google no país. Os protestos aconteceram, pois, durante a crise, a população foi obrigada a ser abastecida com água salgada.
“Data centers consomem muita água. Isso é um problema porque a escassez de água está se tornando uma das principais razões de conflitos no mundo”, aponta Golestan Radwan, diretora digital do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA).
A Scala alega usar “tecnologias de resfriamento sem desperdício de água no resfriamento” e que não há “necessidade de reposição, mas apenas uma carga inicial no sistema”. Ao Repórter Brasil, contudo, não indicou a carga prevista para Eldorado do Sul.
Brasil: futuro antro de data centers
Essa matriz energética (limpa) que o Brasil tem graças ao grande peso das hidrelétricas está transformando o País em destino potencial para a instalação de data centers. Mas as mudanças climáticas que mundo enfrenta deixa todo mundo de sobreaviso.
Isso é observável no anuário da Empresa de Pesquisa Energética, ligada ao Ministério de Minas e Energia, que deixa bem claro: “em 2021, o país atravessou a pior seca dos últimos noventa anos” e “o ano de 2023 foi de clima mais quente e seco“.
A Reuters trouxe, para ilustração, uma pesquisa do Morgan Stanley, indicando que os data centers emitem parcela significativa de gases do efeito estufa. Boa parte dessas emissões vem de geradores de energia movios a óleo diesel, costumeiramente acionados quando há crise hídrica.
Já o Banco Mundial produziu relatório no qual alerta para o aumento do uso de energia por tais infraestruturas com a presença de enchentes. Segundo a EBC, em 2024, o município da futura cidade data center teve toda a área urbana afetada pela enchente, que segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), é consequência da crise climática que o planeta enfrenta.
Em contrapartida, o terreno no qual o empreendimento será erguido ficou intacto. No início deste mês, várias escavadeiras estavam removendo centenas de pés de eucalipto distribuídos pelos 535 hectares de terra da Scala, segundo o Repórter Brasil. Antes de a empresa adquirir o espaço, esses eucaliptos eram utilizados para fabricar lenha.
O portal também conversou com um dos operadores das escavadeiras, que frisa que “temos que terminar até o fim do mês [abril] para entregar definitivamente para o novo dono”.

E o licenciamento ambiental?
Como dito antes, não há um consenso quanto a regras de licenciamento ambiental para data centers ao nível estadual e federal. Contudo, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental do Rio Grande do Sul (Fepam) sugeriu a criação do “ramo data center” no ordenamento legal de licenciamento.
“Isso vai regrar e alinhar o enquadramento e deixar clara a competência municipal e estadual em relação ao licenciamento dos empreendimentos”, disse a instituição, em nota enviada ao site. Todavia, não se sabe quando o processo será concluído.
Quanto ao governo federal, foi apresentado o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial 2024-2028, que pede o investimento de R$ 5 bilhões ao eixo “infraestrutura e desenvolvimento de IA“. O governo também editou o marco legal para os data centers, mas ainda não o publicou.
Soares defende que o ramo de data centers não deve se restringir ao Rio Grande do Sul, devendo ser expandido para todo o território nacional. “São muitas lacunas. Não podemos desburocratizar aqui para acelerar o desenvolvimento sem olhar para os impactos“, prossegue.
A Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Rio Grande do Sul diz que “o Estado já levou ao governo federal a pauta que visa criar ambiente regulatório favorável aos data centers e às questões ligadas à inteligência artificial. Caso se efetive, será uma conquista que beneficiaria todo o País“, não citando informações sobre riscos e impactos ambientais.
Em setembro, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), defendeu a celeridade do processo no Brasil. “Se não construirmos imediatamente este ambiente favorável, corremos o risco de ver a transição energética acontecer em outros países, deixando-nos para trás. Agir agora é crucial para garantir que o Brasil não fique no final da fila nesta importante transformação global”, pontuou.
Ainda naquele mês, o PNUMA recomendou que os países padronizassem procedimentos visando medir o impacto da IA. Nessa medição, se inclui a extração de minérios para construção dos projetos e o treinamento da tecnologia, bem como o consumo de água e energia elétrica.
“Atualmente, cada um mede e quantifica [os impactos] da forma que acha melhor e adota as medidas que considera adequadas. Mas é muito difícil avaliar a eficácia dessas medidas, porque não existe um método consensual”, reforça Radwan, da ONU. “Devemos falar sobre como garantir que a transformação digital seja ambientalmente sustentável“, completa.
O que dizem os citados
O Olhar Digital entrou em contato com as fontes citadas na reportagem e atualizará o espaço tão logo receba as respostas.