Jogos podem levar a casos de violência? O que dizem cientistas e pesquisadores?

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O recente crime bárbaro no RJ onde um jovem assassinou os próprios pais com auxílio da namorada resgatou a discussão de que jogos podem levar a comportamentos violentos. E essa não é uma discussão de hoje.

Porém, apesar de muito se falar quando um jogo específico é relacionado a um crime, poucos realmente recordam do assunto num nível acadêmico. E a proposta deste artigo é resgatar, ao menos parte da discussão acadêmica sobre o tópico.

Jogos digitais já trouxeram várias polêmicas.

Desde o Modern Warfare 2 e a infame fase do aeroporto a Spec Ops: The Line retratando traumas de guerra. Isso sem falar em Bully, que é polêmico em quase a totalidade e o desenvolvedor de Mortal Kombat 11 que foi diagnosticado com estresse pós-traumático.

O que dizem cientistas e pesquisadores?

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Para começar, a própria ideia de “jogo” nem sempre é algo fácil de conceituar. E pode parecer estranho começar o artigo assim, mas tudo ficará mais claro conforme se avança.

Talvez a melhor obra para referência é Rules of Play, de Katie Salen e Eric Zimmerman. Trata-se de um livro de 688 páginas e com duas colunas por página em fonte 10. Porém, os que quiserem uma abordagem mais psicológica podem ler Os Jogos da Vida, de Eric Berne. E ainda é possível citar o clássico Homo Ludens de Huizinga.

Os autores, em geral, concordam que jogos são uma mídia ativa. Ou seja, são um meio pelo qual o jogador aprende algo ao mesmo tempo em que exercita algum aspecto do que aprende. E isso vale para gatos aprendendo a caçar enquanto brincam a jogadores aprendendo dinâmicas de fluídos em Satisfactory.

Pode não ser uma simulação perfeita, mas é muito mais segura, barata e ainda permite que algo seja aprendido. E a diversão está relacionada ao aprendizado.

Aprendizado e diversão

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A primeira conclusão, portanto, é que jogos podem ensinar. Uma das razões de tanto se falar em “gamificação”. A forma como eles ensinam é através da experiência. E como Raph Koster destacar em Theory of Fun for Game Design, jogos ensinam enquanto são divertidos.

Mais especificamente, o argumento do autor é que aquilo que torna um jogo interessante e divertido é que o jogador está aprendendo algo. E quando o jogador está satisfeito com o que aprendeu, ele perde interesse em jogar. Ou seja, quando o jogador pensa que atingiu um estado de “domínio”, ele fica entediado.

E o divertir-se ao aprender é o que explica o sucesso de jogos como Dark Souls.

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Por “aprender” pode-se querer dizer “conhecer algo da história e não gostar”. Algo que se aplica particularmente a RPGs e é esse o motivo pelo qual spoilers estragam a experiência de certos jogadores.

Porém, também é preciso considerar que, de uma perspectiva acadêmica, quando o jogador quer aprender a história, a experiência é mais próxima de um livro ou filme que de um jogo. O que traz uma questão fundamental: o jogador precisa experienciar o jogo enquanto jogo.

E é por isso que acadêmicos começam com a conceituação de jogo.

O problema de “jogo”

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Ao conceituar “jogos”, entende-se que “jogos digitais” existem como opções entre tantos outros jogos. E as mesmas perguntas que se aplicam aos jogos digitais se aplicam a outros jogos.

Nos anos 2000, RPGs tinham fama de serem ambientes onde os jovens se reuniam para aprender a cultuar o demônio. E jogos de futebol já foram conhecidos pela intensa violência entre as torcidas organizadas.

A questão central, contudo, é que o agenciamento do jogador precisa ser fundamental para que se fale em jogo. E aquilo sobre o qual o jogador tem agenciamento, ou seja, capacidade de decisão, é o mais determinante.

Um jogo em que o jogador não possa tomar decisões morais não pode ser avaliado, enquanto jogo, da perspectiva moral. O que, na prática, faz de títulos point and click mais morais que títulos FPS.

Jogos Digitais e violência

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Até aqui, em resumo, concluiu-se que:

  • Jogos podem ensinar;
  • Jogos ensinam enquanto divertem;
  • Jogos Digitais podem ensinar.

E o fato de jogos poderem fazer isso não significa que todos os jogadores irão aprender e, ainda que aprendam, não significa que aprenderão as mesmas coisas. Essa é a explicação para os vários níveis de jogadores: alguns veem mais razão em aprender mais do que outros.

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O exemplo mais gritante: jogadores de GTA não viram ladrões de carro. GTA significa “grande ladrão de carro”. E jogadores de Satisfactory não viram, necessariamente, engenheiros.

Pode-se explicar de outra forma: alguns jogadores de títulos de estratégia podem ser ótimos em mecânicas enquanto outros saberão a lore, mas jogarão no fácil. E alguns podem ter domínio de ambos.

Então, a resposta rápida para “jogos digitais podem ensinar ou incentivar crimes?” é “sim”. E isso justifica que títulos sejam proibidos em determinados países.

Porém, a resposta longa envolve considerar que o jogador tem um papel ativo na decisão por cometer o crime. E aí é preciso voltar a outros autores.

Escapismo

Créditos: Rocket League/EpicGames.

O primeiro fator para o quanto um jogo pode ensinar ou incentivar crimes, portanto, reside na capacidade de o jogador se identificar com o jogo neste aspecto. Sem identificação, o jogador não terá o interesse pelo jogo.

E o problema da identificação esbarra no problema da representação vs abstração. Ou seja, um jogador pode invadir uma delegacia de polícia em GTA pelo desafio, não porque vê que está se preparando para um crime. Em outras palavras, ele está fazendo isso exatamente porque não é um crime e quer um desafio.

Perceba-se que a questão da abstração é o motivo de ninguém imaginar que se criará uma versão de Rocket League com carros reais.

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Uma forma bem simples de explicar a questão da identificação é com jogadores de Monster Hunter. Alguns procuram fazer a melhor build. Outros só querem fazer a armadura mais bonita. E há aqueles que só estão para jogar com os amigos.

Em títulos com alguma mecânica relacionada à moralidade, como Fable, Red Dead Redemption e Infamous, alguns jogadores irão cometer determinados atos para testar os limites do sistema moral criado pelos desenvolvedores. É o mesmo motivo pelo qual jogadores vão para além da borda de jogos de mundo aberto.

Nestes casos, trata-se mais de entender o sistema criado, ou seja, de divertir-se enquanto aprende, do que praticar para cometer algum crime. Estudiosos também fazem isso.

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E a falha de sistemas morais em jogos é relativamente bem documentada por quem procurar exploits. Em Age of Wonders III é possível cometer crimes de guerra sem perder moralidade positiva.

Como resultado, a conclusão mais razoável é que, na prática, jogos que incentivem crimes atuam como fatores de reforço, não como os principais responsáveis por incentivar um crime.

Fatores de reforço

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Aqui já se afasta um pouco da questão de jogos e se aproxima de questões da psicologia. E outras linhas podem levantar outras questões, mas o raciocínio é similar.

Essa questão de fatores de reforço é bem conhecida, inclusive, por Richard Rouse III, que comenta do assunto em Game Design: Theory and Practice. No caso, ele cita que jogadores tendem a jogar por vários motivos e quanto mais motivos um jogador tem, melhor para os desenvolvedores.

O que significa que os desenvolvedores devem ter uma razão principal, um gancho, mas fatores de reforço para incentivar os jogadores. E um jogo ser leve e barato pode ser um reforço muito potente para ele ser comprado.

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Na psicologia, Burrhus Skinner fala da questão de múltiplos fatores atuarem em reforço mútuo. Neste sentido, um jogo que leve alguém a cometer um crime, geralmente, atuará como reforço de um comportamento que já existe.

Isso significa que não seria errado assumir que o criminoso usaria outros meios de reforço caso não encontrasse o jogo. No próprio caso citado no início deste artigo, há um claro reforço da namorada do jovem na execução do crime.

Em suma, de uma perspectiva científica, ainda que o jogo tenha algum papel em incentivar o crime, ele não pode ser atribuído como causa exclusiva ou mesmo como a causa mais importante. E não foram encontrados estudos, ainda, que destaquem essa questão.

Ou seja, afirmar que um jogo tem maior ou menor culpa entra na parte da especulação.

Uma nota positiva

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Para encerrar o artigo, é importante destacar que os mesmos fatores que permitem que jogos possam ter uma influência negativa permitem que eles possam ter um impacto positivo. Novamente, trata-se de “permitir”, pois dependerá do jogador de alguma forma.

E aquilo que se aplica a jogos digitais também pode ser dito da piada de que UNO é responsável pela perda de amizades. Assim como Mario Kart.

Porém, o que falar de títulos como This War of Mine? That Dragon, Cancer? Ou It Takes Two?

São obras que simplesmente não funcionam como livro ou filmes, mas funcionam em seu impacto emocional somente enquanto jogos digitais. Porque o jogador toma parte, experiencia e, portanto, pode levar para o lado pessoal.

Créditos: Final Fantasy VII.

Parte do fato de Final Fantasy VII ter recebido o tratamento premium no remake, nos termos dos estudos aqui citados, deve-se à Arieth ser morta por Sephiroth e os jogadores levarem para o lado pessoal.

E parte do impacto emocional de To The Moon deve-se a isso: a história é levada para o lado pessoal, de modo que os jogadores não podem ficar indiferentes ao desfecho.

Créditos: Steam.

Não são necessários gráficos potentes para tal, o que também explica porque jogos indies conseguem fazer grande sucesso: em seus sistemas de jogo, eles conseguem ser mais interessantes que jogos AAA.

Ou seja, alguns jogos com ótimos gráficos não são capazes de serem bons jogos. Podem ser bons filmes para se assistir, mas não são bons jogos com os quais interagir. Inclusive, é possível que alguns títulos de VR sejam menos interativos que outros títulos tradicionais.

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