Dois dias após ser eleito, o novo papa norte-americano, Leão XIV, surpreendeu ao anunciar que a regulação da inteligência artificial (IA) será uma de suas prioridades. Durante seu primeiro discurso ao Colégio de Cardeais, ele destacou que a transformação tecnológica representa um dos maiores desafios para a dignidade humana na atualidade.
O pontífice revelou que escolheu o nome Leão em referência ao Papa Leão XIII, que, no final do século 19, se destacou por defender os direitos dos trabalhadores no auge da Revolução Industrial. Agora, Leão XIV busca repetir esse papel, mas diante da “revolução digital” e dos impactos da IA no trabalho, na justiça e na própria dignidade das pessoas.
O papa quer respostas rápidas para os riscos da IA
Nascido em Chicago e formado em matemática, Leão XIV é mais familiarizado com tecnologia do que seu antecessor, o Papa Francisco. A preocupação com os riscos da inteligência artificial, no entanto, não é nova no Vaticano. Nos últimos anos, Francisco se tornou uma voz global sobre os perigos da IA, embora tenha admitido, no início de seu papado, que mal sabia usar um computador.
Agora, Leão XIV assume essa agenda de forma ainda mais incisiva. Segundo o cardeal Giuseppe Versaldi, próximo do novo papa, “ele quer que ciência e política atuem imediatamente, sem permitir que o progresso avance de forma arrogante, prejudicando os mais vulneráveis”.
Vaticano e big techs
- Nos últimos dez anos, líderes de empresas como Google, Microsoft, Cisco, Meta, IBM, Anthropic, Cohere e Palantir participaram de encontros no Vaticano para debater os impactos éticos da IA.
- Esses executivos buscam, ao mesmo tempo, influenciar a visão da Igreja sobre a tecnologia e entender como ela pode impactar políticas públicas e regulações globais.
- Apesar do tom cordial, as conversas nem sempre resultaram em consensos.
- Enquanto o Vaticano defende um tratado internacional vinculante para regulamentar a IA, muitas empresas preferem se comprometer apenas com diretrizes éticas voluntárias.
- O cenário ficou ainda mais complexo após o governo de Donald Trump revogar regulamentações da era Joe Biden na presidência dos Estados Unidos e se posicionar contra as regras mais rígidas adotadas pela União Europeia.
As origens do pensamento social da Igreja
A escolha do nome Leão XIV resgata um marco histórico da Igreja Católica no enfrentamento dos efeitos da industrialização. No século 19, o Papa Leão XIII publicou a encíclica Rerum Novarum, que defendia direitos trabalhistas, salários justos e melhores condições de trabalho, ao mesmo tempo em que reconhecia o direito à propriedade privada.
Esse documento foi fundamental para consolidar a doutrina social da Igreja, que desde então busca equilibrar os princípios do capitalismo com responsabilidade social, ética e proteção dos mais vulneráveis.

Durante o papado de Francisco, a relação com a tecnologia começou de forma bem diferente. Conhecido como o “papa do Snapchat”, ele ficou famoso pelas selfies com fiéis e líderes mundiais. No entanto, sua preocupação inicial era a inclusão digital dos mais pobres, não exatamente a IA.
Em 2016, o Vaticano recebeu executivos como Mark Zuckerberg (Meta), Tim Cook (Apple) e Eric Schmidt (Google) para discutir como a tecnologia poderia ser usada para o bem. Inclusive, Schmidt chegou a enviar uma equipe do Google ao Vaticano para tentar ajudar na criação de um canal no YouTube voltado aos jovens — projeto que nunca saiu do papel devido à lentidão da burocracia vaticana.
A criação de um pacto ético para a IA
A partir de 2019, a discussão ganhou contornos mais sérios. O então arcebispo Vincenzo Paglia se reuniu com Brad Smith, presidente da Microsoft, para discutir a necessidade de uma abordagem ética na criação de IA. Dali nasceu o Rome Call for AI Ethics, um pacto que empresas como IBM e Cisco assinaram, comprometendo-se com princípios como não violar a privacidade dos usuários e combater qualquer forma de discriminação.
Por outro lado, empresas como Google e OpenAI ainda não aderiram ao acordo, e o Vaticano segue tentando convencê-las.

O Vaticano reconhece que a inteligência artificial tem enorme potencial em áreas como saúde, educação e até na evangelização, mas também levanta preocupações sérias. Uma delas é a concentração de poder nas mãos de poucas empresas, além do risco de que armas autônomas e chatbots possam substituir relações humanas, afetando crianças e jovens.
O Papa Francisco, em encontros com CEOs, fez analogias entre a IA e a Torre de Babel, destacando que algoritmos treinados com poucos idiomas poderiam acabar excluindo boa parte da humanidade. Em outra ocasião, alertou os executivos: “Vocês perdem a humanidade das pessoas quando tentam reduzi-las a dados.”
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O futuro da IA sob a liderança de Leão XIV
A morte de Francisco, em abril deste ano, elevou ainda mais a discussão sobre inteligência artificial no Vaticano. Muitos cardeais expressaram preocupação com o impacto da tecnologia na vida espiritual, enquanto líderes africanos alertaram sobre o impacto ambiental da exploração mineral para abastecer a indústria de tecnologia.
Agora, resta saber como Leão XIV usará a influência da Igreja para pressionar por regras mais rígidas para a IA. Como resumiu o cardeal Versaldi: “Essas ferramentas não devem ser demonizadas, mas precisam ser reguladas. A questão é: quem vai regulá-las? Não é crível que sejam as próprias empresas.”