“Quando cair pedras do espaço era loucura: a história de Chladni e Biot

Imagine viver em um tempo em que acreditar que pedras caíam do céu poderia lhe render uma camisa… de força. Literalmente. Para os cientistas de alguns séculos atrás, a ideia de que rochas pudessem vir do espaço era tão absurda quanto uma chuva de gato. Mas estamos em junho, o mês do Asteroid Day — a data em que lembramos que sim, nosso planeta é atingido por rochas espaciais o tempo todo. E foi graças a duas mentes corajosas — Ernst Chladni e Jean-Baptiste Biot — que essa verdade, que hoje nos parece óbvia, foi aceita há mais de dois séculos.

Até o final do século XVIII, o pensamento dominante era de que todas as rochas da Terra vinham da própria Terra. Claro, não existia ainda a geologia moderna, e muito menos a ciência planetária. As pedras que ocasionalmente caíam dos céus eram encaradas como lendas populares, exageros de camponeses, efeitos de relâmpagos petrificados — as chamadas “pedras de raio” ou, no máximo, rochas expelidas de algum vulcão. A ideia de que esses corpos poderiam ter origem extraterrestre soava como alquimia ou misticismo. O Iluminismo, embora tenha promovido avanços imensos, também trouxe consigo uma rigidez que afastava qualquer hipótese que parecesse minimamente supersticiosa. E poucas ideias pareciam mais folclóricas do que a de pedras cósmicas despencando do firmamento.

Mas essa percepção equivocada começa a mudar graças a um personagem inusitado, um heroi improvável dessa história.

Se você fizer vibrar uma chapa metálica presa em seu ponto central, e essa chapa estiver coberta por uma fina camada de areia, os grãos irão saltar e se acumular em certos pontos, formando padrões que dependem da frequência da vibração e do ponto onde ela foi aplicada. Esses padrões ficaram conhecidos como ‘Figuras de Chladni’, em alusão ao músico alemão Ernst Chladni que descobriu o fenômeno. 

[ À esquerda, Ernst Chladni. À direita, método de criação das ‘Figuras de Chladni’ – Créditos: Ludwig Albert von Montmorillon e autor desconhecido ]

Só que além de músico, ele também era físico, e ficou intrigado quando seu amigo Georg Lichtenberg lhe contou sobre um bólido que ele havia visto em 1791. Chladni resolveu investigar o caso e coletou inúmeros relatos do mesmo fenômeno, além de casos semelhantes de outros bólidos e de quedas de rochas na Europa e na América do Norte naquele século. 

Em 1794, ele publicou um pequeno livro intitulado ‘Sobre a origem das massas de ferro encontradas por Pallas e outros semelhantes a ela, e sobre alguns fenômenos naturais associados’. Um título comprido e uma ideia ousada: os meteoritos vinham do espaço. Numa época em que sequer sabíamos da existência de asteroides, Chladni propôs que os meteoritos eram fragmentos de corpos celestes que, ou não sobraram do processo de formação dos planetas, ou eram detritos gerados por grandes impactos. Nada de relâmpagos petrificados ou lendas rurais — Chladni falava de pedras reais, moldadas pelo cosmos e arremessadas contra a Terra.

[ Meteorito da classe pallasito, composto de cristais de olivina em uma matriz metálica. Recebeu esse nome em alusão a Peter Pallas, que encontrou o primeiro meteorito dessa classe e que ajudou Ernst Chladni a concluir que essas rochas tinham origem extraterrestre – Créditos: Doug Bowman ]

Fantástico! Mas claro, ele foi ridicularizado. A maioria dos cientistas da época ‘torceu o nariz’ para a ideia que parecia romper com tudo o que se sabia — ou se achava que sabia. Mas Chladni não se intimidou. Com poucos dados, baseando-se em relatos e em fragmentos reais de meteoritos preservados em coleções, ele traçou um raciocínio lógico, visionário e, com o tempo, impossível de ignorar. Mesmo sem grandes instrumentos, ele plantou a semente da meteorítica, a ciência dos meteoritos.

Mas faltava algo que Chladni não podia oferecer: uma prova irrefutável, testemunhada por muitos e estudada por um cientista respeitado. Essa prova viria em 1803, na pequena cidade de L’Aigle, na França. Na tarde de 26 de abril, o céu estremeceu e uma chuva de pedras caiu sobre a região, espalhando mais de 3 mil fragmentos em quilômetros de solo. Era impossível ignorar. Tantas pessoas viram o fenômeno, ouviram os estrondos e recolheram os pedaços. O impacto (literalmente e figurativamente) foi tão grande que o próprio governo francês resolveu intervir.

Chamaram, então, Jean-Baptiste Biot. Físico, químico, membro da prestigiosa Academia de Ciências de Paris e pupilo direto de Laplace. Biot era respeitado, metódico, e, acima de tudo, cético. Enviado oficialmente à cidade, ele não apenas recolheu fragmentos como também entrevistou dezenas de testemunhas, mapeou os locais de queda e analisou as rochas em laboratório. O resultado foi um relatório detalhado, cuidadoso, que confirmou aquilo que Chladni havia proposto quase uma década antes: aquelas pedras não eram terrenas. Tinham origem no espaço. E se caíram ali, poderiam cair em qualquer lugar.

[ Jean-Baptiste Biot – Créditos: Auguste Lemoine ]

Foi o início da mudança. O relatório de Biot não apenas deu credibilidade à ideia de Chladni — ele praticamente fundou a ciência moderna dos meteoritos. Pela primeira vez, a comunidade científica não pôde mais negar. A Terra, afinal, não era um mundo isolado e imperturbável. Estávamos — e estamos — em meio a um sistema cósmico extremamente dinâmico, onde os encontros são inevitáveis.

A partir daí, o estudo dos meteoritos ganhou novo status. Eles deixaram de ser rochas curiosas e fonte de lendas e desconfianças, para se tornarem verdadeiros presentes dos céus, pistas importantes na compreensão do passado do nosso planeta e de todo o Sistema Solar. Alguns meteoritos são mais antigos que a própria Terra, formados antes do nosso planeta existir. Eles revelam segredos sobre a formação dos planetas, a química primordial do Cosmos, e até sobre a origem da água e dos blocos de construção da vida.

Hoje, graças à base lançada por Chladni e Biot, temos missões como a Hayabusa, do Japão, ou a Osiris-REx, da NASA, que não apenas estudam, mas trazem amostras de asteroides para análise aqui na Terra; Sabemos identificar a composição química de meteoritos com precisão, rastrear suas origens, e até simular os impactos que eles causariam se atingissem nosso planeta. O que começou com uma hipótese ridicularizada se tornou uma das áreas mais fascinantes e relevantes da ciência planetária.

[ Grande Meteoro de 1860 nos Estados Unidos – Créditos: Frederic Church ]

E é por isso que, neste mês do Asteroid Day, vale a pena voltarmos o olhar para esses dois nomes que não estão nas capas dos livros escolares, mas que abriram caminho para uma nova forma de aprender com essas rochas espaciais — e por vezes também temê-las. Ernst Chladni e Jean-Baptiste Biot ousaram acreditar no improvável, questionaram o senso comum da época e nos mostraram que, de vez em quando, recebemos a visita de extraterrestres. Não aqueles de olhos grandes em naves espaciais abduzindo nossas vacas. Mas extraterrestres de rocha e metal, que nos contam as histórias fascinantes de nossas origens cósmicas. 


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