Do inferno de Vênus ao oceano da Terra: o fim épico da Kosmos 482

Nas primeiras horas da madrugada deste sábado, um visitante inusitado cruzou o céu e voltou para casa após mais de meio século vagando pelo espaço. Não foi um meteoro qualquer, nem uma nave alienígena cruzando nossos céus, mas sim uma sonda bem terráquea, lançada em 1972, que finalmente completou sua jornada de volta. Trata-se da sonda soviética Kosmos 482, que deveria ter ido até Vênus, o planeta mais infernal do Sistema Solar. Só que o foguete que deveria colocá-la a caminho de Vênus teve problemas, e a Kosmos 482 acabou presa à órbita da Terra — como um fantasma metálico, silencioso e esquecido, que agora fez sua última e breve apresentação final.

Segundo a Roscosmos (agência espacial russa), a reentrada aconteceu às 03:26 da madrugada (horário de Brasília), sobre o Oceano Índico, e embora muitos tenham acompanhado e rastreado sua trajetória em tempo real, não há imagens conhecidas da reentrada até o momento. Como ela ocorreu durante o dia, é bem provável que essa cena espetacular tenha passado despercebida pelos nossos olhos — mas não sem deixar sua marca na história.

[ Caminho provável da reentrada segundo a Roscosmos – Reprodução: satflare.com ]

O que torna essa reentrada especialmente interessante — e até histórica — é que a Kosmos 482 não era um satélite ou um lixo espacial qualquer. Estamos falando de um artefato projetado para penetrar a atmosfera venusiana, atravessando nuvens ácidas, resistindo às temperaturas escaldantes e à pressão esmagadora do planeta. O “casco” da Kosmos 482 foi feito para enfrentar o inferno de Vênus — o que faz pensar que atravessar a atmosfera terrestre deve ter lhe parecido um passeio pelo paraíso. Por isso, espera-se que ela tenha sobrevivido à reentrada e chegado praticamente intacta ao fundo do Oceano. Um final épico para a história fascinante dessas sondas que desafiaram os limites da engenharia e visitaram o inferno no alvorecer da era espacial: a era das missões Venera.

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Naquela época, enquanto os Estados Unidos miravam a Lua e Marte com suas missões RangerSurveyor e Mariner, os soviéticos decidiram explorar o planeta mais próximo e enigmático: Vênus. Um planeta do tamanho da Terra, mas que esconde, debaixo de densas nuvens, um mundo misterioso, despertando a curiosidade de uma humanidade que começava a se aventurar nas águas rasas do imenso Oceano Cósmico. O que haveria sob aquelas nuvens? Seria um pântano tropical? Um deserto escaldante? Ou um oceano de lava? Era preciso ir lá para descobrir — e o jeito soviético de fazer isso era lançar uma missão atrás da outra, aprendendo com as falhas e aperfeiçoando as sondas até atingir seus objetivos.

[ Três visões de como os cientistas imaginavam Vênus antigamente: um pântano tropical, um deserto escaldante ou um oceano de lava – Imagem gerada por IA ]

História da Kosmos 482

Em 1961, enquanto por aqui começávamos a produzir um Fusca 100% nacional, do outro lado do mundo os soviéticos lançaram suas primeiras missões a Vênus. A Proto-Venera falhou ao tentar deixar a órbita da Terra e a Venera 1 chegou a sobrevoar Vênus, mas perdeu a comunicação devido a um superaquecimento e não conseguiu transmitir seus dados de volta para a base. Mesmo com a falha, a Venera 1 foi a primeira espaçonave construída pelo homem a sobrevoar outro planeta.

Nos anos seguintes foram outras 6 tentativas que não conseguiram alcançar o destino, até que em 1966, a Venera 2 repetiu o sobrevoo e a falha de comunicação da Venera 1. Logo em seguida, a Venera 3 se tornou a primeira a penetrar a atmosfera de outro planeta, atingindo o solo de Vênus em 1º de março daquele ano. Embora também tenha perdido a comunicação ao entrar na atmosfera venusiana, a Venera 3 marcou um ponto de inflexão na história da exploração de Vênus.

Mas foi somente em 1967, com o sucesso da Venera 4, que os soviéticos começaram a compreender a dimensão dos desafios que enfrentavam. A sonda conseguiu fazer a primeira entrada atmosférica bem-sucedida em Vênus, transmitindo dados que surpreenderam a todos. À medida que penetrava a atmosfera venusiana, seus sensores detectavam um aumento substancial na temperatura e na pressão, até perder a comunicação a 26 quilômetros de altitude, sob uma temperatura de 262 °C e uma pressão equivalente a 22 atmosferas terrestres. A Venera 4 parecia ter sido cozida em uma panela de pressão do tamanho de um planeta.

[ Réplica da Venera 1 – Créditos: Museu Nacional da Astronáutica da Rússia ]

Em 1969, outras duas missões tiveram mais sucesso. Com cápsulas reforçadas e paraquedas ajustados à pressão, as Veneras 5 e 6 resistiram por quase uma hora flutuando na atmosfera venusiana e enviaram para a Terra os dados que foram fundamentais para o sucesso do próximo grande passo: pousar em Vênus.

E foi assim, após muitos fracassos, que vieram os triunfos. A Venera 7 se tornou, em 1970, a primeira sonda a pousar em outro planeta e transmitir dados de sua superfície. Por conta de uma falha no paraquedas, o pouso foi “mais intenso” do que o planejado e a sonda acabou caindo de lado. Cerca de 20 minutos depois, as comunicações foram interrompidas, provavelmente porque a cápsula foi esmagada pela enorme pressão na superfície, equivalente a 90 atmosferas terrestres. Além disso, a temperatura por lá beira os 460 °C — o que é mais quente do que Cuiabá no verão.

Em 1972 e 1975, as Veneras 8 e 9 conseguiram pousos mais bem-sucedidos e, com isso, transmitiram mais dados para a Terra, incluindo as primeiras fotos tiradas diretamente da superfície de Vênus. O céu amarelado e o solo coberto de rochas fragmentadas nos mostravam, finalmente, como o inferno deve se parecer.

A partir de então, todas as missões soviéticas a Vênus foram bem-sucedidas até a Venera 16 e suas sucessoras Vega 1 e 2. Juntas, enviaram informações valiosíssimas sobre a atmosfera, a geologia e a história do planeta. Mas foi justamente entre a Venera 8 e 9, na última missão mal sucedida do Programa Venera, que começa a história que se encerrou hoje.

[ Superfície de Vênus fotografada pela Sonda Venera 13 – Fonte: Roscosmos ]

Kosmos 482, que agora retornou à Terra, era a irmã gêmea da Venera 8. As duas foram lançadas com poucos dias de diferença, em março de 1972. Mas um desligamento prematuro do foguete que levaria a sonda a Vênus impediu a Kosmos 482 de alcançar a órbita de transferência. Com isso, ela não conseguiu escapar da gravidade terrestre e ficou presa na órbita da Terra. Parte dela reentrou na nossa atmosfera alguns dias depois, mas o módulo de descida — aquela cápsula blindada feita para resistir ao inferno venusiano — permaneceu intacto, solitário, girando ao redor da Terra por 53 anos. E agora, voltou para casa.Nas últimas semanas, sua órbita vinha decaindo rapidamente, e muitos acompanharam o fenômeno em tempo real, rastreando sua trajetória com expectativa. Imagens recentes sugerem que seu paraquedas pode ter se aberto parcialmente, o que não deve ter interferido muito no destino final da Kosmos 482. O paraquedas provavelmente foi rapidamente consumido pelo calor da reentrada, enquanto a cápsula pode ter resistido e atingido o solo no Oceano Índico — como uma cápsula do tempo, trazendo as memórias de uma época em que a humanidade ousou se lançar no espaço e desafiar os limites da engenharia para visitar o planeta mais extremo do Sistema Solar.

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