Uma população única de bovinos que retornou à vida selvagem após ser abandonada em uma ilha remota do Oceano Índico teve seu destino selado em 2010, apesar de representar um caso raro de adaptação evolutiva e despertar questionamentos sobre conservação da biodiversidade.
Situada a 4,44 mil km a sudeste de Madagascar, a Ilha Amsterdã — de tamanho comparável à ilha francesa de Noirmoutier — abrigou, durante mais de um século, uma extraordinária população de gado que sobreviveu e prosperou em condições aparentemente incompatíveis com a criação bovina: clima temperado oceânico, ventos constantes e, por vezes, violentos, chuvas frequentes e ausência de pontos de água permanentes.
Das origens à adaptação
- Análises genéticas de 18 animais, a partir de amostras coletadas em expedições científicas de 1992 e 2006, revelaram que a população teve origem em apenas cinco ou seis cabeças de gado abandonadas em 1871 por um fazendeiro chamado Heurtin, originário da Ilha da Reunião;
- Ele e sua família pretendiam estabelecer um negócio de criação bovina, mas permaneceram apenas alguns meses devido às difíceis condições climáticas e ao isolamento;
- Os estudos genômicos mostraram que os bovinos eram descendentes de duas populações distintas: cerca de 75% de origem taurina europeia (próxima ao atual gado Jersey) e 25% de zebus do Oceano Índico;
- Esta composição genética mista provavelmente contribuiu para o sucesso da adaptação, pois as condições climáticas da Ilha de Jersey, no Canal da Mancha, são relativamente semelhantes às da Ilha Amsterdã.
Contrariando teorias anteriores, os pesquisadores não encontraram evidências de “nanismo insular” — fenômeno adaptativo em que animais reduzem de tamanho para se adaptar a recursos limitados.
Os animais fundadores já eram naturalmente pequenos, semelhantes ao gado Jersey e ao zebu de Madagascar, explicam Laurence Flori, diretora de pesquisa de genética animal na UMR SELMET Inrae, Mathieu Gautier, pesquisador em genômica populacional, estatística e evolutiva na Inrae e Tom Druet, diretor de pesquisa da F.R.S.- FNRS (Fonds National de la Recherche Scientifique) da Univerdiade de Liège, ao The Conversation.
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Organização social complexa
A pesquisa detectou marcas de seleção natural nos genomas desses animais, particularmente em genes ligados ao funcionamento do sistema nervoso, desempenhando papel fundamental na adaptação ao ambiente inóspito e no processo de feralização.
Observadores descreveram uma organização social complexa, semelhante à do gado selvagem, com grupos estruturados matrilinearmente, compostos principalmente por fêmeas e machos jovens, grupos geograficamente separados de machos adultos e grupos mistos formados no início da temporada reprodutiva.
O estudo também destacou a ação combinada de vários genes controlando características complexas envolvidas na feralização, sugerindo que mutações já presentes no genoma dos animais fundadores permitiram rápida adaptação à vida na natureza em apenas algumas gerações.
Abate controverso
Apesar de seu interesse científico excepcional, toda a população de gado da Ilha Amsterdã foi abatida em 2010, ironicamente declarado Ano Internacional da Biodiversidade Selvagem e Doméstica, sem que nenhuma amostra biológica adicional fosse coletada.
A justificativa para a erradicação foi a suposta ameaça que os animais representavam ao ecossistema da ilha, especialmente a duas espécies endêmicas: o arbusto Phylica arborea e o albatroz de Amsterdã (Diomedea amsterdamensis).
Esta decisão foi tomada mesmo após esforços anteriores para limitar o impacto ambiental do gado, como a redução controlada do rebanho para cerca de mil animais em 1988 e para 500 em 1993, além da construção de cercas que confinavam os bovinos a uma área de aproximadamente 12 km², fora da região onde se encontravam os albatrozes e as plantas endêmicas.
Os serviços ecossistêmicos prestados pelo rebanho — como a limpeza da vegetação rasteira e a manutenção de um aceiro ao redor da base científica, importantes na prevenção de incêndios — também não foram considerados.
Um incêndio na ilha no início de 2025 destacou a importância dessas funções que os bovinos desempenhavam.

Questionamentos científicos
Em 2009, diversos especialistas, incluindo veterinários, agrônomos e geneticistas populacionais, questionaram a justificativa e as condições da erradicação. Uma petição foi enviada ao Prefeito das Terras Austrais e Antárticas Francesas (TAAF), e um comunicado de imprensa foi publicado em março de 2010, chegando inclusive ao Senado francês.
Esses cientistas não questionavam a necessidade de proteger espécies selvagens endêmicas, mas destacavam a importância ecológica e evolutiva dessa população bovina singular, defendendo a biodiversidade doméstica, frequentemente negligenciada em comparação com a biodiversidade selvagem.
A origem doméstica desses bovinos selvagens, considerados por muitos ambientalistas como desprovidos de valor patrimonial, combinada com o desejo de retornar a uma natureza original idealizada, pode ter acelerado a decisão de erradicação pelos gestores da reserva natural.
Somente em 2024, 14 anos após o abate dos bovinos, foram finalmente implementadas medidas para controlar e erradicar espécies que ameaçavam mais diretamente a fauna e flora endêmicas, como roedores e gatos, como parte do Indian Ocean Island Ecosystem Restoration Project.
Este caso único levanta importantes questões sobre os esforços de conservação e destaca a necessidade de, antes de qualquer decisão sobre populações exóticas que se tornaram selvagens, estabelecer uma coleta sistemática de amostras biológicas para, no mínimo, Preservar seu patrimônio genético único.